Venvanse, febre na Faria Lima, some das farmácias; confira

Alta procura pelo medicamento para TDAH está gerando dificuldades para encontrar o produto. Fabricante diz que escassez pode estar condicionada ao aumento da demanda em algumas regiões

O Venvanse desapareceu das farmácias. Liberado pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para indicações em tratamentos médicos de transtorno de déficit de atenção com hiperatividade (TDAH) e de transtorno de compulsão alimentar, o medicamento se tornou febre entre profissionais liberais e agentes do mercado financeiro. 

A promessa, dita em escritórios a boca (não tão) pequena, é que doses do Venvanse seriam capazes de alavancar a performance e aumentar a capacidade de concentração – características essenciais em setores que, tradicionalmente, exigem longos períodos de trabalho dos funcionários. Na região da avenida Faria Lima, centro corporativo e financeiro de São Paulo, a popularidade do medicamento é até motivo de piadas. O problema, porém, é que o uso indiscriminado é prejudicial no longo prazo e pode trazer riscos à saúde, segundo especialistas ouvidos pelo BP Money.

 

Uso indevido e “glamourização” do Venvanse provocam corrida pelo remédio 

Há um ano, viralizou no LinkedIn o anúncio de uma vaga de emprego que convocava apenas advogados que tomassem Venvanse. Para a empresa, era desejável um profissional que, além de “adorador de tecnologia e negócios”, precisava ter um perfil workaholic, o que era associado pelo escritório ao uso do medicamento. 

Em novembro de 2018, a Anvisa aprovou a indicação do remédio para controle do transtorno de compulsão alimentar. No tratamento de TDAH, a droga já era liberada desde 2010. Após a fusão da Takeda com a companhia britânica Shire, que detém a patente do Venvanse, o remédio passou a ser fabricado e distribuído no País pela farmacêutica japonesa.

Pelo efeito estimulante no sistema nervoso central, criou-se a imagem de que o Venvanse seria capaz de alavancar a performance e aumentar a capacidade de concentração.

Trata-se de uma distorção da proposta medicinal da droga, que por vezes ganha referências como o longa hollywoodiano “Sem Limites” (2011), uma adaptação da obra “The Dark Fields” (editora Bloomsbury), thriller escrito por Alan Glynn. No filme, o protagonista interpretado por Bradley Cooper passa a usar uma química não testada que melhora as suas habilidades mentais e usa isso para chegar ao topo do mercado financeiro. 

Esse e outros paralelos na ficção alçaram o medicamento a um status quase de “droga milagrosa” no mercado, especialmente entre profissionais do mercado financeiro e da área jurídica. No Twitter, centenas de usuários idolatram o Venvanse e falam abertamente sobre o uso do medicamento para melhorar a performance no trabalho e nos estudos. Muitos deixam explícito que usam o medicamento sem acompanhamento profissional. “Café, Venvanse e Redbull. Perdendo cinco anos de vida em uma madrugada”, tuitou um dos internautas. 

No TikTok, brincadeiras sobre o efeito estimulante da substância ajudam a propagar o mito da “superdroga”. Tudo não passa de um fenômeno ilusório, como explicou ao BP Money o psiquiatra Mario Rodrigues Louzã Neto, coordenador do programa de déficit de atenção e hiperatividade no adulto (Prodath) do IPq (Instituto de Psiquiatria) do Hospital das Clínicas de São Paulo. “Se o indivíduo não tem TDAH, o Venvanse não aumenta o rendimento”, afirmou. 

Louzã Neto conta que uma pessoa que não tenha TDAH já apresenta um rendimento ótimo dentro da sua capacidade, mesmo que sua performance possa ser pontualmente afetada por fatores como privação de sono ou problemas de saúde, por exemplo. Esses pacientes apresentam sinais de baixa capacidade de concentração desde a infância. 

Os casos de pessoas com TDAH, sim, são beneficiados com o uso do Venvanse. Para todos os outros, como aponta Louzã Neto, ainda que as pessoas acreditem sentir efeitos estimulantes nos primeiros usos, no longo prazo, existe o efeito rebote: queda acentuada da capacidade de concentração. 

“O uso por quem não precisa é uma inutilidade. Na verdade, as pessoas estão prejudicando o desempenho do sistema nervoso central e esse ‘rendimento’ deve cair mais para frente”, avaliou o coordenador do Prodath no IPq. Para ele, há de se considerar até mesmo a hipótese de efeito placebo do uso do medicamento por quem não tem indicação. 

Primeiro, porque a substância base do Venvanse, o dimesilato de lisdexanfetamina, tem um tipo de metabolização que faz com que ela seja liberada gradualmente no organismo, isso quer dizer que o efeito do medicamento no corpo não é imediato. Mesmo assim, muitos usuários nas redes sociais brincam com o “momento quando o Venvanse bate”. A frase é frequentemente acompanhada por vídeos que ilustram episódios de “superprodutividade” ou relatos sobre uma alta capacidade de concentração. 

É a suposta glória de “conseguir estudar três meses de matéria em uma noite”, como reportou um estudante no Twitter. Esse “barato” do Venvanse não existe, no entanto, justamente pela forma que a droga interage com o organismo. “Cada pessoa tem uma capacidade de atenção X, e, a princípio – excluídos os casos de TDAH -, estamos sempre próximos dos 100%”, disse o especialista. “Mas é claro que a tendência é que a performance seja sempre mais alta no início do ciclo de produção e, com o decorrer do tempo e com a estafa, ela caia”. Assim, o estímulo externo estaria sendo confundido com efeito do medicamento. 

 

Acesso irregular ao Venvanse e conteúdo das redes sociais ajudam a banalizar uso

Ao tentar esticar o ciclo de produção intelectual, ignorando os sinais do corpo sobre a necessidade de descanso, a capacidade do indivíduo de reter informações e de se concentrar cai vertiginosamente.

Uma pessoa que trabalha na área de programação topou falar com o BP Money sobre o uso do Venvanse na condição de anonimato. Segundo o dev – profissionais que trabalham com desenvolvimento de software -, a rotina com dias de privação de sono para dar conta do volume de trabalho fez com que o remédio parecesse uma boa solução. O entrevistado alega tomar uma cápsula de 50 mg do Venvanse “apenas às vezes”. 

“Não só senti melhorar a produtividade, mas também tirou o apetite, então você fica totalmente focado no que está fazendo”, disse o profissional ouvido pela reportagem. Ele defende que o Venvanse teria ajudado a aumentar sua produtividade. “Terminei um projeto grande em 16 horas, um ritmo bem acima do meu normal”. 

Mas Louzã Neto explica que o sistema nervoso central (responsável por receber e transmitir informações para o corpo) necessita de descanso de forma regular. “O sono é quando, pondo de forma simples, o cérebro se ‘refaz’”, disse. Então, em algum momento, o desgaste dessa privação deve começar a aparecer. “O nosso organismo é mais tolerante à sede e fome do que ao cansaço. Por isso, a pessoa ficará mais irritada, não terá mais capacidade de se concentrar e passará a sentir muito esse esgotamento”, disse. 

Essa fama fez a procura pelo Venvanse aumentar entre aqueles que não têm indicação para uso da droga. Nas redes sociais, páginas de vendas de receitas médicas – uma prática criminosa com pena de detenção de três meses a um ano – prometem acesso a drogas de uso regulamentado e controlado e até abordam usuários nos comentários de posts com alto engajamento. Uma dessas páginas avisa: “outro perfil caiu, mas os corre [sic] sempre continua. O mais confiável do sub do Twitter, estamos sempre on na DM”.  

Além da prática criminosa, o risco da banalização desse tipo de conteúdo na internet é que as pessoas tendem a acreditar naquilo que reforça suas próprias crenças, o chamado viés de confirmação, como apontado pelo psiquiatra.

“É por conta dessa tendência que, nas redes sociais, as pessoas podem ter dificuldade em separar o que é uma informação de credibilidade e de uma fonte oficial da abordagem descabida e distorcida sobre esses temas, principalmente na área da saúde”, pontuou Louzã Neto.

No caso do Venvanse, apesar de se tratar de uma droga de interação segura no organismo, segundo o especialista, a preocupação que decorre do uso sem acompanhamento médico está ligada a possíveis efeitos no aumento de pressão arterial, especialmente para pessoas acima dos 45 anos.

A automedicação leva ao internamento de muitas pessoas, um fenômeno que não está ligado exclusivamente ao abuso de psicoativos. “O verdadeiro alerta é para que as pessoas não façam isso com a sua saúde, porque, no fim, elas são as mais prejudicadas”, concluiu o médico.

 

Por que o remédio sumiu?

Segundo o canal de serviço de atendimento ao consumidor da Takeda (TAKP34), fabricante do medicamento, um pico de demanda teria provocado esse desfalque nas prateleiras. Desde abril os comentários sobre a escassez e dificuldades de encontrar a droga de uso controlado no mercado inundaram as redes sociais e a página da farmacêutica no Reclame Aqui. 

“Lidamos com a falta dele [Venvanse] no mercado diversas vezes, não sei como ficar sem e não encontro em farmácia nenhuma”, postou um paciente de Belo Horizonte, que alega fazer uso do medicamento desde 2013 e já ter rodado diversas farmácias na capital mineira atrás do produto. Desde a última semana do mês de abril, reclamações sobre a falta da droga se multiplicaram no “Reclame Aqui”. Até a terça-feira (3), eram mais de 30 comentários sobre a indisponibilidade do remédio em diferentes cidades: São Paulo, Goiânia (GO), Santos (SP), Curitiba (PR), Brasília, Cuiabá (MT) e outras. 

Muitos usuários vêm sendo informados que o Venvanse estaria em falta em todas as unidades das redes de farmácias. Na central de atendimento ao consumidor da companhia, o menu ganhou até uma seção especial para “informações relacionadas ao medicamento Venvanse”. Por lá, os atendentes informam que a distribuição já está sendo retomada e, na sequência, indicam os locais em que ele pode ser encontrado.

Em posicionamento enviado ao BP Money na quarta-feira (4), a farmacêutica afirma que “os medicamentos Venvanse e Juvene encontram-se disponíveis no mercado em todas as suas apresentações, não havendo problemas na comercialização e/ou processo logístico de distribuição”. Mas a companhia reconhece que “eventualmente, por uma variação de oferta versus demanda em determinadas regiões, é possível que haja alguma dificuldade para localizar os produtos em alguns pontos de venda”.

A Anvisa, que monitora o mercado a fim de avaliar o risco de desabastecimento ou restrição de acesso a medicamentos resultante de descontinuação de fabricação ou importação, confirmou após consulta no seu sistema que não há relatos sobre interrupção ou descontinuação do medicamento da parte da Takeda. 

 

Takeda já havia lançado comunicado com orientações sobre uso do Venvanse

Em fevereiro deste ano, a farmacêutica Takeda lançou um comunicado público “com o objetivo de reforçar o compromisso global em oferecer uma saúde melhor para as pessoas e um futuro mais brilhante para o mundo”, disse a companhia.

O documento publicado pela biofarmacêutica ressaltou informações e orientações sobre o uso adequado do Venvanse, como o reforço de que “a utilização para qualquer outra finalidade que não a indicação aprovada no país [TDAH ou transtorno de compulsão alimentar] é considerada uso fora do estabelecido em bula (off-label), não estando respaldada por estudos clínicos relevantes que possam mostrar evidências de sua eficácia e/ou segurança”.

A Takeda reforçou também a importância de que o uso do Venvanse integre um programa multidisciplinar de tratamento, além da necessidade de acompanhamento do médico que prescreveu a medicação.

 

Redes de farmácias na capital paulista confirmam a dificuldade de acesso ao Venvanse 

O BP Money foi atrás: na primeira semana de maio até a manhã da quarta-feira (4), data de fechamento desta reportagem, atendentes das redes Drogaria São Paulo, Pague Menos, Droga Raia e Drogasil confirmaram a falta geral do remédio no município. Com visibilidade ao estoque de todas as unidades em suas respectivas redes, segundo o que foi informado à equipe, um problema de distribuição estaria afetando a disponibilidade da droga nas farmácias. 

Algumas poucas unidades especializadas em medicamentos de alto custo – como é o caso do Venvanse – confirmaram ter o produto da Takeda em estoque. Um estoque pequeno, no entanto, como é padrão nesses comércios. “Costumo ter poucas unidades, mas quando soube do problema de acesso ao Venvanse, tratei de dobrar a compra. Agora tenho apenas duas caixas aqui na loja”, confirmou a dona de uma farmácia na região do Ipiranga, na zona sul de São Paulo. 

Uma caixa com 28 cápsulas do Venvanse sai entre R$ 400 e R$ 500, em média, dependendo da concentração da droga. Nem mesmo o similar, o remédio Juvene, também à base de dimesilato de lisdexanfetamina, está disponível nas farmácias. Ambos são produzidos pela Takeda, gigante japonesa que há quatro anos comprou a Shire, que desenvolveu o Venvanse. O negócio entre as duas farmacêuticas movimentou US$ 62 bilhões, o maior na indústria naquele ano. 

Para os pacientes que têm indicação de uso e continuam com dificuldade de encontrar os medicamentos Juvene e Venvanse nas farmácias, a Takeda indicou em nota que “entrem em contato por meio dos canais oficiais do SAC: 0800 771 0345, e-mail [email protected] ou chat disponível na página www.takeda.com/pt-br”.